O começo atribulado deste novo ano lectivo, com professores sem colocação e outros deslocados para muito longe da sua residência, trouxe-me à memória o início da minha carreira, como professor primário.
Tinha 17 anos quando acabei o curso, em 1976. Tive portanto que esperar até ter 18, para poder começar a leccionar. Fui colocado no início de Maio seguinte, na povoação de Alhais, concelho de Pombal, na Mata do Urso. Lembro-me de me dizerem na Direcção Escolar de Leiria para ir de comboio e descer na estação de Louriçal e depois pedir boleia, pois não havia transportes nem... estrada! Assim fiz, depois das tensas despedidas, pois era a primeira vez que saía de casa. Com uma grande e pesada mala, para o que desse e viesse, lá parti, de autocarro até Caldas e depois no comboio até Louriçal, como me haviam dito. Chegado ali, confirmaram-me que havia duas maneiras de ir para Alhais: de táxi, metade do caminho por estrada de terra batida, ou a pé por um atalho pelo meio de pinhais. Como tinha receio de me perder e tinha o enorme malão, apanhei um táxi. A escola ficava junto de algumas habitações daquilo a que não se podia chamar de aldeia, pois as casas eram todas dispersas, muito humildes, sem electricidade nem esgotos. Eu tinha sido colocado na telescola. Os televisores funcionavam através de um gerador a gasolina, comprada pelos professores numas bombas que existiam ao lado da estação, como vim a saber depois e cujo pagamento nos era devolvido apenas no final do ano lectivo. Por esse motivo víamos apenas as emissões das disciplinas mais importantes. Tinha inscritos mais de 20 alunos, mas só apareciam 5. Os outros, já andavam a trabalhar com os pais e ia mensalmente a GNR a casa cobrar-lhes a multa por não comparecerem na escola. Os alunos, mal sabiam falar, o tempo das aulas era em boa parte ocupado a explicar-lhes o significado de cada palavra que utilizava. Viviam isolados de tudo e todos e pareciam bichos do mato. Tinham todos mais de 12 anos, havendo um com 17 anos. Eu tinha 18! A colega que me coube em sorte, tinha maus fígados e reunia um enorme lote de defeitos, como vim a descobrir a pouco e pouco. A tal ponto, de prescindir da sua boleia diária e passar a vir empoleirado atrás da bicicleta dos alunos que se revesavam a ir-me buscar à estação de Louriçal. No primeiro dia, tentei que alguma família de alunos me alugasse um quarto, com alimentação incluída. Ninguém se dispôs a isso, dizendo que não tinham casas em condições, o que provavelmente seria verdade. Regressei à estação, que não tinha nada além de uma pequena mercearia, onde me informaram que por ali ninguém me alugaria quarto. "Ainda se fosse a uma senhora...". Já era final de tarde e havia que resolver o problema, pois no dia seguinte era preciso regressar. Em desespero de causa, apanhei um autocarro, o último do dia, no sentido de Leiria. Disse-me o cobrador que na Guia, junto à paragem, havia um café que costumava alugar quartos. Quando lá chegámos, o cobrador entrou no café, trouxe o dono até cá fora e aquele disse que não, que já há tempo que não tinha quartos nenhuns para alugar. Que seguisse, pois em Monte Redondo havia uma pensão e talvez conseguisse ali. Em Monte Redondo saí e lá fui com a mala, até à pensão S. Cristóvão. O autocarro partiu e eu ali fiquei, dependente daquela pensão. Depois de um grande debate lá para dentro, entre os 2 irmãos (donos) e suas esposas, e eu a rezar para que me aceitassem, lá me vieram comunicar que tinham um quarto para mim e que me podiam assegurar almoço e jantar todos os dias. Foi um alívio! Era longe, tinha que apanhar o autocarro ou o comboio até à estação de Louriçal e depois seguir pelos pinhais até Alhais. E foi assim até ao final do ano lectivo. Os meus pais tinham que me ajudar financeiramente, pois o que ganhava não chegava para os transportes e para pagar a estadia na pensão. Nos anos seguintes, já com uma Vespa, andei a saltitar de escola em escola, a fazer substituições, 15 dias aqui, um mês acolá, com intervalos em casa. 3 meses na escola de Engenho, Marinha Grande, com entrada às 8,25m, em Fevereiro. Tinha que sair de Peniche às 7 horas, com um frio penetrante e só começava a amanhecer quando passava pela Nazaré. Em dias de chuva, e foram muitos, quando chegava à Atouguia da Baleia já ia encharcado, pois nem tinha impermeável. Ficava com a roupa a secar no corpo e muitas vezes acabava de a secar na viagem de regresso, quando já não chovia. Mas nunca faltei um único dia e antes da hora de entrada estava à porta da escola. Recordo um dia de temporal, com chuva intensa, ventania e trovoada. De tal forma intensa, que perto de Valado de Stª Quitéria, optei por parar para me abrigar debaixo de 2 grandes pinheiros, com algum risco, pois a trovoada era forte. Mas o granizo e o vendaval assim me obrigaram e ali fiquei, gelado e encharcado, à espera que passasse mais. Assim, passei pela Marinha Grande, Alpedriz (Alcobaça), Carvalhal e Baraçais (Bombarral), Ferrel, S.Bernardino, Lugar da Estrada e Serra D'El-Rei (Peniche). Sempre que havia uma vaga, chamavam a Leiria todos os professores por colocar. Quem não comparecesse ficava excluído nesse ano. Quantas vezes ia a Leiria, na Vespa, debaixo de chuva, quando havia um lugar para 90 candidatos e o meu número na lista andava lá para o fim! Já para não falar de lugares que se sabia estarem vagos, nunca apareciam a concurso e eram depois ocupados por meninas de pernas bonitas que se pavoneavam no meio da multidão que entupia a Direcção Escolar em dias de concurso e que eu via entrar nos gabinetes dos senhores directores, apenas reservados para esses acessos privilegiados... Como eu tinha muitos cabelos nas pernas, esses gabinetes sempre me estiveram vedados... Acabei por me fartar de tudo aquilo, do autêntico desprezo por quem andava ali a mendigar uns dias de trabalho, de coisas que via e com que não concordava e mandei toda aquela gente à fava. Em todos aqueles anos, apenas lá vi uma senhora que trabalhava com afinco, que era justa, competente e que gostava de ajudar os outros. Mas foi uma experiência que me marcou profundamente. Hoje ninguém suportaria o que eu passei. Mas mesmo nesse tempo, também tinha colegas que, quando eram colocados a 5 Km de casa, no dia seguinte entregavam um atestado médico! Sempre houve de tudo e sempre haverá. Considerei sempre que os meus alunos não tinham qualquer culpa do que me acontecia a mim e do modo como o sistema funcionava e portanto não os podia penalizar. Com todas as adversidades e estando a fazer uma coisa de que não gostava, sempre cumpri a minha missão o melhor que pude e que sabia, pois ninguém me obrigava a lá andar. Quando me fartei, vim-me embora e encerrei esse capítulo da minha vida. Antes de mim, outros tinham sofrido bem mais... A cada ano lectivo que começa, com os lamentos de tantos casos que as televisões nos mostram, regressam sempre estas minhas memórias do passado...
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